quarta-feira, 17 de junho de 2015

Nem mortos nem vivos

Puxava o corpo pelos pulsos junto com a pá. A ideia de carregá-la nos braços poderia ser melhor, mas eu não tinha forças. A tarde se desvanecia em meio às sombras, pouco a pouco, e uma chuva fina acariciava nossos corpos.

– Eu não estou morta – dizia com seus lábios enegrecidos. Sua pele já estava branca como leite pela falta da circulação do sangue, seus olhos fundos, incrivelmente abertos, exibiam a pupila dilatada.

– Eu já disse que está... – respondi, enquanto arrastava-a para o lago.

Era ali que nos encontrávamos escondidos. Minhas memórias tinham gosto de sonho, quase podia sentir o cheiro da primavera outra vez. Mas logo a chuva de outono me trazia a realidade, eu estava ali sem ela, e com ela.

– Eu não estou morta – repetia, seus lábios pareciam não se mover. Gostaria sinceramente que ela parasse de dizer isso.

– Sim, você está – respondi novamente. Soltei-a, peguei a pá e comecei a cavar de baixo de uma árvore.

O cheiro de terra úmida entrava pelas minhas narinas. O vento frio trazia consigo uma melodia triste, fazendo as folhas mortas dançarem no ar. Ah, por que fizemos isso? Não havia sangue nem ferida, pareceria que estava viva, não fosse o estado de putrefação. Admito, seu corpo fedia. Mas eu não chorava, sabia que de nada adiantaria.

– Eu não estou morta – tornou a repetir. Apenas olhei para aquele rosto sem alma e depois desviei meu olhar para o pôr-do-sol. Ele estava distante, monótono e alienado ao que acontecia ali. Voltei meus olhos para sua cova, não estava muito funda, mas deveria servir.

– Nem mortos nem vivos... Não há nome para o que somos – eu disse, enquanto colocava seu corpo naquele túmulo improvisado.

Cada pá de terra jogada em seu corpo me distanciava cada vez mais do passado. Como era difícil cobrir aquele corpo tão belo, mesmo estando podre por dentro. A única coisa de que me arrependo era de não ter conseguido fechar seus olhos, eles teimavam em ficar abertos, vigilantes. Pois bem, cobri-os, assim como cobri todo o corpo até a última pá de terra possível.

– Eu não estou morta – continuava a dizer em meus ouvidos. E eu sei que, de alguma forma, ela vai continuar.

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