– É uma maldição, esta é a única explicação – disse um jovem
observador. Seus óculos tinham uma grossa lente e seu corpo era escondido por
um jaleco branco desproporcional para a sua pequenez.
– Por favor, não caia em uma crença irracional – respondeu a
doutora. Estava de costas para o novo estagiário, suas mãos enrugadas estavam
escondidas dentro do seu jaleco para se proteger do frio do ar-condicionado e
olhava para as criaturas sem demonstrar feições. – O que tentamos fazer aqui é
o oposto.
Eles estavam separados dos outros por uma película
resistente de vidro. De um lado, os dois em meio às maquinas; do outro, algumas
criaturas em um ambiente simulando algum tipo de esgoto.
A diretora do projeto olhou para o menino e continuou:
– Eles se desenvolveram como bípedes, mas foram
condicionados a rastejar e o resultado é não poderem mais se reerguer por causa
de um atrofiamento da coluna vertebral. – Eles andavam de um lado para o outro,
não eram mais de dez enclausurados, alguns comiam alimentos podres, outros
brigavam por um canto da cela.
– Mas por que os deixam nessa condição? Olhe pra eles! – o estagiário
apontou para o vidro. – Por que dão lixo para eles comerem? – Estava quase
gritando. Ao notar o olhar de reprovação de sua superior, mudou o tom de voz, abaixou
os olhos e cochichou: – Não faz sentido.
– Estou aqui há algumas décadas, meu rapaz – disse a mulher,
ríspida. – Você acha que é o primeiro a pensar nisso? Acha que eu não penso
neles nos meus sonhos? Num futuro onde possam recuperar sua humanidade? – Ficou
em silêncio um momento e voltou a olhar através do vidro. – Eles não sobrevivem
em outras condições. Foram condicionados a isso e agora falecem em condições adversas.
O estagiário ficou em silêncio. Olhou a sua volta, estava
cercado de máquinas e se perguntava se aquilo era o que queria para a sua vida.
Por que se importar com eles? Poderia
ter uma carreira brilhante em outra área de pesquisas, não precisava tentar
recuperar uma raça quase extinta, pensava consigo.
Olhava para uma das criaturas, era fácil notar sua feminilidade
animal, pois eles não trajavam roupas, sendo a sua sujeira a única roupagem.
Ela – ou aquilo? – segurava um pedaço de madeira inútil e não deixava os outros
se aproximarem do seu objeto precioso, era devoção irracional ao nada.
– Eu sei o que está pensando – disse por fim a doutora. – “Por
que não deixamos eles se extinguirem de uma vez?” é o pensamento comum no
primeiro dia... Embora muitos deles tentaram nos aniquilar, cometemos uma
justiça que marcou sua história de desenvolvimento... – Existiam tantas coisas
por debaixo daquilo: a descoberta da anomalia, a tentativa de extermínio preventivo,
a guerra, a resignação dos derrotados. Como ela poderia verbalizar a injustiça?
– Acredito que nem todos eles sejam corrompidos e esta crença é o combustível
para esse projeto.
– E o que faz a senhora acreditar nisso? Eles vivem na podridão
e nós somos superiores a isso. – respondeu o jovem olhando para a mulher e logo
voltando a olhar para eles, não conseguia acreditar em alguma recuperação para
aquilo.
– Superiores? Ora, eles vivem na podridão porque os obrigamos
a isso! – criticou, com raiva. – Eles também são humanos como nós! Se você que
acabou de sair da academia acha isso uma maldição, então me diga: maldição para
quem? Para eles que vivem sem ter com o que viver ou nós que fomos sua ruína?
A sala ficou silenciosa. Por sorte, o vidro era a prova de
som, o que aliviava a tortura do estagiário. Ele não voltaria no dia seguinte,
pediria a transferência para outra área de pesquisa e a doutora sabia disso.
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